quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Vivendo por música

Os dois caminhavam no parque, como já estavam acostumados a fazer em todas as manhãs de sábado. Era quase um ritual; a maneira que encontraram de manter a proximidade que tinham, em meio à vida agitada por estudos, compromissos e tudo o mais. Aproveitavam aquelas poucas horas juntos para conversar. Falavam sobre tudo: ela sobre a correria da faculdade de Biologia, sobre os treinos de natação; ele sobre o quanto estava adorando estudar Filosofia e sobre o curso de teatro que estava fazendo (algumas vezes, até aproveitava para ensaiar alguns textos, sem avisá-la); trocavam opiniões a respeito de filmes, músicas e coisas que aconteciam no mundo.
Naquela manhã, já haviam percorrido quase todo o caminho que costumavam percorrer, o que significa que já haviam comido algodão doce, dado comida aos patinhos do lago e acabaram de disputar a tradicional corrida entre as duas maiores árvores.
- Ahá! Ganhei... De novo! - o rapaz falou alto, ainda ofegante - Desiste, Vivi, você nunca vai conseguir me ganhar!
A garota chegou correndo:
- Semana passada eu ganhei, senhor Bernardo!
- Não conta! Você sabe que eu torci o pé no meio do caminho!
- Não posso fazer nada se você não sabe correr como gente. Sabe como é: amigos, amigos, negócios a parte!
Os dois riram ainda tentando recuperar o fôlego. Então, de repente, Bernardo ficou sério:
- Preciso falar contigo. - arrastou-a até a sombra da árvore que marcava a "linha de chegada".
Ela achou estranho, mas já estava acostumada com as mudanças de humor dele, sempre que ia ensaiar um dos textos do curso de teatro. E ele continuou:
- Imagine que eu seja uma música.
Ela pensou em dizer "Desde que não seja funk..", mas desistiu, preferindo deixar o amigo continuar com o seu texto.
- Neste caso, eu seria formado por uma letra e uma melodia, que seriam meu pai e minha mãe. Poderia ser cantado por qualquer pessoa, afinada ou desafinada. - o rapaz chegou mais perto - Mas somente uma pessoa seria capaz de cantar de uma forma que todas as outras acreditassem ser a melhor. E essa pessoa é você.
A garota ficou encabulada, desviando o olhar.
- Nossa! Que texto bonito, Bê. É pra essa semana?
- Não... - respondeu o jovem
- Este eu ensaio faz muito tempo, mas só hoje tive coragem de dizer.
Confusa, a garota levantou o rosto, até encontrar os olhos dele. Ele a fitava como que esperando uma resposta. Era quase possível ouvir o coração dos dois batendo.
- Neste caso, - ela falou, ainda o olhando nos olhos - eu terei que discordar de você. Não posso aceitar o fato de você ser uma música.
Bernardo abaixou a cabeça, sem jeito e disse:
- Eu sabia que deveria ter ficado quieto.
- Bê...
- Não acredito que fui falar uma coisa dessas!
- Bê...
- Esquece o que eu falei, Viviane! Eu devo estar louco e...
- Bernardo! - gritou a menina - Pára! Sabia que você fala demais às vezes?
- Eu sei! E é por isso que eu te prometo que nunca...
A garota o puxou pela gola da camisa e o beijou. Ainda sem entender, o rapaz retribuiu o beijo e os dez segundos seguintes pareceram eternos para ele. Separaram os lábios lentamente e, como que acordando, Bernardo começou a falar:
- Não entendi, Viviane! Você disse que eu não podia ser sua música e...
- Bernardo! Pára de falar! Ou eu vou ter que te beijar de novo?
- Isso era pra ser uma ameaça?
Os dois riam.
- Posso terminar o que estava dizendo, agora? - o rapaz respondeu afirmativamente com a cabeça - Pois então, eu disse que não posso aceitar que você seja uma música, simplesmente porque eu acho que, na verdade, nós dois somos um dueto, que deve ser cantado por nós dois juntos.
Agora foi a vez do rapaz puxar a garota para si. E os dois mergulharam juntos numa viagem agradável, interrompida por Bernardo, depois de certo tempo:
- Só tem um problema... - ela o olhou com feição preocupada - Nós dois sabemos que... - afastou-a um pouco de si - Você canta muito mal!
E começou a rir.
- Ridículo!! - disse ela, ameaçando dar um tapa nele, que, por sua vez, saiu correndo. E ela não pensou duas vezes em correr atrás dele.

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